Orígenes contra a intercessão dos santos e anjos? Será mesmo?

Escrito por Lucas Falango

Os escritos de Orígenes são alvos de certa controvérsia nessa questão, por um lado, ele afirma a intercessão dos santos, por outro, parecer afirmar que a oração deve ser feita somente ao Pai. Muitos protestantes, vendo isso de forma isolada do contexto geral de suas obras, pensam ter encontrado em Orígenes, um opositor da prática Católica. Como se ele, de algum modo, fosse um representante do pensamento protestante no período primitivo. Quando analisamos mais de perto a questão, vemos que a afirmação não é tão cabal quanto parece. Para começar, Orígenes cria que os santos intercediam, e só aí ele já está muito mais próximo da doutrina Católica do que da doutrina da esmagadora maioria do protestantismo. E suas ideias quanto ao tema vão muito além disso.

Um outro ponto é que Orígenes, pelo modo como ele definia a oração em seus escritos, ensinava que não devíamos orar nem mesmo a Jesus, mesmo afirmando que o Logos era divino, caindo então no erro do subordinacionismo. Isso é totalmente contrário à doutrina da Trindade que os cristãos católicos, ortodoxos e protestantes professam. Em uma de suas obras ele diz: “Mas se aceitarmos a oração em seu sentido pleno, não podemos orar a qualquer ser gerado, nem mesmo ao próprio Cristo, mas apenas ao Deus e Pai de todos, a quem nosso próprio Salvador orou.” (Da Oração, 10). E noutra: “julgamos que não devemos orar aos seres que oram: eles mesmos preferem nos remeter ao Deus a quem eles oram…” (Contra Celso V,11). Na lógica de Orígenes nós não devemos orar aos seres que oram, logo, se Jesus ora ao Pai, nós não deveríamos orar a Ele. Parece cabal então que Orígenes considera que a oração deve ser feita única e exclusivamente ao Pai (e isso já está errado em uma perspectiva Trinitária ortodoxa).

Porém, nas mesmas obras, Orígenes diz: “Pois é preciso elevar todo pedido, prece, súplica e ação de graças ao Deus supremo através do sumo sacerdote que está acima de todos os anjos, o Logos vivo de Deus. E ofereceremos ao próprio Logos pedidos, preces, ações de graças, e mesmo súplicas, se formos capazes de discernir entre o sentido absoluto e o sentido relativo da palavra “súplica”.” (Contra Celso V,4). E também diz:“No entanto, se oferecemos ações de graças a homens que são santos, quanto mais devemos dar graças a Cristo, que sob a vontade do Pai conferiu tantos benefícios sobre nós? Sim e interceda com Ele como fez Estêvão quando disse: “Senhor, não lhes imputes este pecado.” Imitando o pai do lunático, diremos: “Peço, Senhor, tenha misericórdia” de meu filho ou de mim mesmo, ou conforme o caso.” (Da Oração, cap. 10).Na mesma passagem bíblica citada por Orígenes, vemos também explicitamente que Estevão ora a Jesus, dizendo: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito” (Atos 7,59), com certeza isso também não passou despercebido aos olhos de Orígenes, mas ainda assim, no mesmo capítulo do tratado, ele diz: “A oração feita ao Filho e não ao Pai é totalmente inadequada e apenas sugerida em desafio a verdade manifesta” (Da Oração, cap. 10).

O que então Orígenes quis dizer quando fala sobre a oração ser feita somente ao Pai, mas logo depois falar de orações (no sentido amplo do termo, como usamos hoje) sendo feitas ao Filho que é um ser que ora? Ao qual, momentos antes, ele diz que seria um absurdo orar? À primeira vista parece bem contraditório, mas, na verdade, não passa de uma questão semântica: para Orígenes, existe uma oração (προσευχὰς) em “sentido pleno/sentido absoluto” que deve ser feita somente a Deus Pai (pois em última instância, é Ele que concede, de fato, o objeto das nossas orações), e é a isso que ele normalmente se refere quando fala de oração em seu tratado, é a oração neste sentido absoluto. Mas ele também reconhece que há pedidos, preces, ações de graças e súplicas que não são propriamente orações, a não ser em sentido relativo. Entendendo o termo “oração” somente da maneira absoluta, ninguém consideraria legitimo orar aos santos.

Mas, seguindo a própria lógica de Orígenes, se existem pedidos, preces, orações, ações de graças e súplicas que nãosão aquelas orações em absoluto (as que não devemos oferecer aos seres que oram), é perfeitamente possível dirigir pedidos, preces, orações e suplicas de intercessão aos seres que oram, ou seja, “orações relativas” aos santos e anjos, pois “eles conhecem os que merecem o favor de Deus, […] cheios de benevolência, com eles oram e intercedem” (Contra Celso, VIII, cap.64). Se os santos conhecem os que são merecedores do favor de Deus, eles não são meramente passivos na oração, eles não rezam genericamente no céu sem saber de nada, mas sim por indivíduos e situações específicas. Se eles sabem quais são os merecedores, então possuem um conhecimento do que se passa no mundo e com cada um dos cristãos (Lc 15,7). Ele ainda diz: “e com eles oram”, para Orígenes toda vez que nós oramos, os santos oram conosco, e, portanto, eles sabem até em que momento começamos a orar. Se eles sabem disso, é porque obviamente ouvem a nossa oração a Deus, logo, nada os impede de ouvir uma súplica ou pedido de intercessão dirigido particularmente a eles, para “remeter ao Deus a quem eles oram” em suas orações (absolutas) as nossas orações (relativas).

Orígenes, em outro lugar, diz: “mas eles [os santos e anjos] cooperam com eles [os cristãos] em seus esforços para agradar a Deus: eles buscam Seu favor em favor deles; com suas orações, eles unem as suas próprias orações e intercessões por eles. […] Estes, mesmo quando não solicitados, oram com eles…” (Contra Celso, VIII, 64). A frase: “mesmo quando não solicitados” implicitamente nos aponta que há ocasiões em que eles são solicitados. Como ele mesmo faz a um anjo em sua Homilia sobre Ezequiel (1,1). Alguns tentam, como subterfúgio, apelar a tradução em português da Paulus que traz “mesmo sem serem invocados”, mas mesmo com essa tradução a frase não necessariamente implica que não há momentos em que eles sejam invocados, na melhor das hipóteses ela é dúbia. E a tradução em inglês: “even when not asked/invoked” está de acordo com a tradução: “mesmo quandonão invocados”. A frase não faria sentido se Orígenes não concordasse que alguma das categorias de súplica pudessem ser dirigidas aos santos, pois, senão, ele provavelmente diria algo como: “mesmo que nunca/jamais invocados”. E que eles eram invocados nós sabemos pelos registros arqueológicos (contemporâneos à Orígenes) nas catacumbas cristãs de Roma, onde Orígenes inclusive esteve (cf: História Eclesiástica, VI, cap. 14,10), e muito provavelmente conheceu esses locais, onde as relíquias eram cuidadosamente mantidas e veneradas, e os peregrinos deixavam suas petições.

Vemos então que existe na teologia de Orígenes um conceito inegável de comunhão dos santos, assim como a noção de que eles possuem um conhecimento sobrenatural do que se passa conosco. Todos os “ingredientes” da doutrina Católica da comunhão dos santos já estão presentes, e nada há contra ela quando se entende corretamente o contexto, o pensamento teológico e a linguagem do autor.Para Orígenes, ter o favor de Deus era estar automaticamente sob o patrocínio dos santos, sendo impossível você orar a Deus, sem que todo o corpo de Cristo, as hostes celestes e os santos no céu, orassem ao seu lado. Para ele, os santos e anjos nos céus conheciam, zelavam e oravam por cada um dos cristãos, essa ideia é profundamente Católica. A ideia de uma relação individualista, o “somente eu e Jesus” do protestantismo, não se encontra nas concepções de Orígenes. Apontar o dedo para uma ou outra aparente divergência, e dizer que por conta disso a igreja na época era uma outra completamente diferente, que nada tinha a ver com a malvada “igreja romanista”, é tapar o sol com a peneira.



Categorias:Patrística, Santos

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