Maria, Mãe de Deus: perspectiva bíblica e patrística.

Ainda que Nestório tenha sido condenado no concílio de Éfeso (431 d.C.), ainda que a Igreja durante os séculos tenha defendido a dignidade da Mãe de Deus, é comum que grupos protestantes continuem a descredenciar o dogma, causando não apenas problemas ao título concedido a Virgem, mas também, um risco eminente de heresia ao separar as naturezas de Jesus Cristo.

O problema em si, gira em torno do fato de que a escritura, nunca usou o termo “Mãe de Deus” (Theotókos) e sim, sempre tenha se referido a Maria apenas como a “Mãe de Jesus”.  A argumentação não poderia ser mais desonesta.

O que podemos dizer quanto a isso?

Perspectiva Bíblica

Inicialmente, é ponto de comum acordo que Jesus Cristo é o “Verbo” e o “Verbo era Deus” (cf. Jo 1,1), São Mateus afirma que o filho que nasceria de Maria seria chamado de “Deus Conosco” (cf. Mt 1,23), o evangelista São João registra que o “Pai e o Cristo são um” (cf. Jo 10,29-30). Dessa forma, afirmar que Maria é “Mãe de Deus” é uma confirmação teológica da unidade hipostática de Nosso Senhor, já confirmado no Concílio de Éfeso em 431. Não podemos esquecer que foi nesse concílio que o herege Nestório, já havia, muito tempo antes do protestantismo, afirmado que a Virgem não poderia receber o título de Theotókos, uma vez que ela seria apenas a mãe de “Jesus homem”. Argumentação semelhantemente usada por nossos opositores, mas, sem base bíblica, uma vez que a escritura atesta a divindade de Cristo.

Um segundo ponto é que a escritura atesta, sem sombra de dúvidas que a Virgem, já havia recebido um “proto título” de sua maternidade divina e que esse título, nada mais é que um sinônimo do vocativo “Mãe de Deus”. Quando Maria Ss. se dirigiu a cidade de Ain Karin, a oeste de Jerusalém, província de Judá para estar com Isabel, ao entrar na casa e saudar sua parenta, recebeu do próprio Espírito Santo (cf. Lc 1,41), através de sua prima, a confirmação de que Maria era Mãe de Deus:

Ora, quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu o ventre e Isabel ficou repleta do Espírito Santo. Com um grande grito exclamou: ‘Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre. Donde me vem à honra que a Mãe do meu Senhor me visite?” (Lc 1,41-43).

A palavra usada por Isabel, acompanhada do “Mãe”, para definir a vocação de Maria, nada mais é que “κυρίου (Kyríou)” que é traduzido por “Senhor”. Tendo em vista que não poderia existir outro Senhor, que não fosse o próprio Deus: “Eu sou o Senhor, e não há outro; fora de mim não há Deus” (cf. Is 45,5a), Isabel que estava repleta pelo Santo Espírito, anuncia aquilo que se tornaria 400 anos depois um dogma de fé: <Theotókos> que em tradução simples, nada mais é do que “Mãe de Deus”. A própria continuação do contexto (cf. Lc 1,45), afirma que a Virgem era “feliz porque creu, pois, o que lhe foi dito da parte do Senhor (isto é, de Deus), será cumprido”.

Vejamos os dois textos no original:

Lc 1,43 – “καὶ πόθεν μοι τοῦτο ἵνα ἔλθῃ ἡ μήτηρ τοῦ κυρίου [Senhor] μου πρὸς ἐμέ.”

Lc 1,45 – “αὶ μακαρία ἡ πιστεύσασα ὅτι ἔσται τελείωσις τοῖς λελαλημένοις αὐτῇ παρὰ κυρίου [Senhor].”

Em complemento, somente no primeiro capítulo do evangelho de São Lucas, já encontramos inúmeras referências onde a palavra “Senhor” (κυρίου / κύριον / κύριος), é usada com o fim único de definir a divindade do Deus de Israel:

                Lc 1,28 – “O Senhor (κύριος) é contigo”;

                Lc 1,46 – “Minha alma glorifica ao Senhor (κυρίου)”;

                Lc 1,66 – “A mão do Senhor (κυρίου) estava”;

                Lc 1,68 – “bendito seja o Senhor (κύριος), Deus”;

                Lc 1,76 – “precederá o Senhor (κυρίου).”

Por fim, “Senhor”, é o título divino de Jesus. Inclusive, o mesmo Lucas, autor do Evangelho, menciona-o em seu livro nos Atos dos Apóstolos:

“Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificaste.” (At 2,36).

At 2,36 – “ἀσφαλῶς οὗν γινωσκέτω πᾶς οἶκος ἰσραὴλ ὅτι καὶ κύριον αὐτὸν καὶ χριστὸν ἐποίησεν ὁ θεός, τοῦτον τὸν ἰησοῦν ὃν ὑμεῖς ἐσταυρώσατε.”

Sendo assim, a bíblia atesta sem qualquer dúvida que o Cristo é Deus e Senhor e que Maria é verdadeiramente “Mãe de Deus”. Por fim, os protestantes mencionam que “nem a bíblia fala de Theotókos”, pois bem, a escritura sagrada também não cita o termo “Trindade” e nem por isso, deixamos de crer nesse dogma de fé.

Perspectiva Patrística

De acordo com as inúmeras denominações protestantes, separadas sem qualquer unidade de fé e batismo (cf. Ef 4,5), o termo “Theotókos” passou-se a ser usado mais comumente no concílio de Éfeso. A questão é: seria verdade essa afirmação? Seria correto dizer que apenas poucos anos antes dessa data, é que os cristãos despertaram para essa verdade e passaram a invocar Maria com esse vocativo? Nada mais falso. Como já demonstramos, o título é bíblico e como consequência dessa verdade de fé, a Igreja desde sempre, atribuiu a Virgem até mesmo para resguardar a divindade de Cristo, o nome de Mãe de nosso Senhor.

Os dois primeiros registros que possuímos, podem ser vistos em uma das epístolas de Santo Inácio de Antioquia (107 d.C.). Embora a Mãe do Senhor não tenha sido chamada de “Mãe de Deus”, a Virgem é colocada em paralelo com “Deus Pai”, onde Cristo, sendo “Deus na carne”, é filho de Deus e filho de Maria.

Existe apenas um médico, carnal e espiritual, gerado e não gerado, Deus feito carne, Filho de Maria e Filho de Deus” (Aos Efésios 7,2).

Em uma segunda tradução, talvez mais audaciosa da epístola aos Efésios, que pode ser encontrada no “Dicionário de Mariologia”, Maria realmente compartilha, juntamente de Deus, o nascimento apoteótico do Verbo encarnado:

Um só é o médico, tanto divino, quanto humano, gerado e ingênito na carne feito Deus, na morte, vida verdadeira; tanto de Maria quanto de Deus” (Efes. 7, sc 10,64 – Dicionário de Mariologia, Verb. “Padres da Igreja”, pg 1005)

Já no segundo texto, Inácio invoca o Cristo como “verdadeiro Deus” e Ele, por sua vez, foi gestado no ventre da Virgem santíssima:

De fato, o nosso Deus Jesus Cristo, segundo a economia de Deus, foi levado no seio de Maria, da descendência de Davi e do Espírito Santo. Ele nasceu e foi batizado, para purificar a água na sua paixão” (Aos Efésios 18,2).

Nesses dois textos primitivos, Cristo além de ser chamado de Deus, é atribuído já na sequência como filho de Maria. No primeiro trecho, “Deus feito carne, filho de Maria”, já no segundo texto, “Nosso Deus Jesus Cristo (…), foi levado no seio de Maria”. Outro padre do início do século II, o filósofo Aristides de Atenas (117 d.C.), compartilha a mesma ortodoxia: Deus desceu dos céus e habitou no seio da virgem.

Deus desceu do céu e se encarnou de uma virgem judia; e habitou em uma filha do homem o Filho de Deus” (Apol. 2,6 Bac 116,136 – Dicionário de Mariologia, Verb. “Padres da Igreja”, pg 1008)

Em continuidade, no ano 155 d.C., Justino de Roma em seu chamado “Diálogo Contra Trifão”, afirma que Deus se manifestou em diversas formas ao longo da história, assim como, se fez homem e nasceu da Virgem. O paralelo nesse trecho é interessantíssimo, uma vez que o santo afirma que a manifestação de Deus aos antigos patriarcas, também se deu no tempo da graça (cf. Gl 4,4), onde o próprio Deus se encarnou no seio de Maria:

Pois bem. Se sabemos que esse Deus se manifestou em várias formas a Abraão, Jacó e Moisés, como duvidamos e não cremos que ele poderia, conforme o desígnio do Pai do universo, nascer homem da virgem, tendo tantas Escrituras pelas quais literalmente é fácil entender que assim de fato aconteceu, conforme o desígnio do Pai?” (Diálogo com Trifão 75,4).

Outro detalhe importante a se observar é que os antigos padres, antes do século III, ao falar de Cristo como “Deus” ou “Filho de Deus”, sempre o uniam a Maria. Vejamos, por exemplo, esse trecho do livro “Contra as Heresias” de Santo Irineu (180 d.C.):

Foi, portanto, Deus que se fez homem, o próprio Senhor que nos salvou, ele próprio que nos deu o sinal da Virgem” (Contra as Heresias [III livro] 21,1).

“Assim como Eva foi seduzida pela fala de anjo e afastou-se de Deus, transgredindo a sua palavra, Maria recebeu a boa-nova pela boca de anjo e trouxe Deus em seu seio, obedecendo à sua palavra (Contra as Heresias” [V livro] 19,1).

Não seria necessário provas adicionais, a fim de afirmar que a Igreja primitiva entendia que Maria era a Mãe de Deus. As ligações de esse axioma Deus Cristo/Virgem são claras e já podem nos conceder o porquê do concílio reunido em Éfeso, se pronunciar em favor dessa verdade. Entretanto, além da confirmação escriturística no início desse artigo e dos três padres do século II citados (Inácio [107 d.C.], Justino [155 d.C.] e Irineu ]180 d.C.]), precisamos verificar se o uso do termo “Theotókos” é anterior a Éfeso. Será que realmente algum escritor usou esse título para Maria?

Em um artigo comum, a primeira citação colocada seria automaticamente a “Sub Tuum Praesidium”. Uma vez que já foi provado exaustivamente por peritos que a oração não é apenas verdadeira, mas também, datada do século 250 d.C., isto é, colocá-la, seria prova primordial que em um tempo primitivo, Maria não era apenas invocada, mas também, chamada pelos cristãos em tempo de perseguição de “Mãe de Deus”, entretanto, alguns protestantes o consideram “falso”. Dessa forma, iremos desconsiderá-lo e partiremos para outros autores.

Segundo o filósofo e doutor em teologia, García Paredes, o primeiro registro que temos do uso da palavra “Theotókos” (exceção para o papiro), está em uma citação de Alexandre de Alexandria (320 d.C.), onde é dito:

“Nosso Senhor Jesus Cristo recebeu real e não aparentemente um corpo da Theotókos Maria” (Ep. Ad Alex. Const. N. 12, em Teodoreto, História Ecclesiastica, I,3: PG 82,908 – PAREDES, Mariologia, pg 238).

Tendo em vista esse trecho e a antecedência a Éfeso (105 anos antes), podemos supor que o termo já era de uso comum entre os padres e fiéis. Hipólito de Roma (335 d.C.), por exemplo, ainda que não tenha mencionado a palavra “Theotókos”, dá todos os indícios de que a crença já estava enraizada na vida da Igreja e no senso comum dos fiéis:

“Dize-me, ó bem-aventurada Maria, que era aquilo que havias concebido no teu seio? Que era aquilo que trazias no teu ventre virginal? Era o Verbo primogênito de Deus que, depois de ter descido dos céus sobre ti, estava sendo plasmado no teu seio como homem primogênito para que o primogênito Verbo de Deus se mostrasse unido ao primogênito homem” (Sobre Elcana e Ana, fragmento 2, GSC I,2, 121 – Dicionário de Mariologia, Verb. “Padres da Igreja”, pg 1009).

Já Gregório de Nazianzeno (329 a 390 d.C.), escritor eclesiástico e contemporâneo de Hipólito, em sua “Carta a Cledônio”, afirmou que aquele que não aceita a Virgem como Mãe de Deus, está separado do divino e eterno Cristo:

“Se alguém não aceita a santa Maria como Theotókos, está então separado da divindade” (Carta 101: PG 36,181 – PAREDES, Mariologia, pg 239).

Seguindo o raciocínio anterior, Gregório em outras obras, afirmou categoricamente que Deus nasceu de uma virgem casta e enfatizou que o ser que nasceria de Maria, era o criador de todas as coisas, logo, a maternidade divina da Mãe do Senhor, se fazia completamente presente na mentalidade da Igreja pré Éfeso:

“De uma virgem casta é concebido e nasce Deus: todo Deus e homem ao mesmo tempo, para salvar-me todo” (Poemas, I, 10, PG 37, 467 – Dicionário de Mariologia, Verb. “Padres da Igreja”, pg 1017).

“O Espírito Santo virá sobre ti (…) Incontaminada e sem mancha é a geração: onde o Espírito Santo se infunde desaparece toda e qualquer contaminação (…) A virtude do Altíssimo cobriu a Virgem com sombra e o Espírito Santo descendo sobre ela, santificou-a, de modo que pudesse acolher aquele por meio de quem tudo foi feito” (Cat. 12,32; 17,6. Pg33, 796.976-977 – Dicionário de Mariologia, Verb. “Padres da Igreja”, pg 1014).

Basílio Magno (379 d.C.) é outro padre capadócio, anterior ao concílio de 431, que usou o termo “Theotókos” ao se referir sobre a Virgem, mãe do Cristo, Verbo encarnado:

“Não a conheceu, diz o evangelho, até o dia em que deu à luz o seu primogênito. Isso levaria a supor que Maria, depois de haver prestado um puro serviço a geração do Senhor, ocorrido por obra do Espírito Santo, não houvesse depois recusado as relações conjugais comuns. Nós, porém, ainda que isso não toque a doutrina da fé (com efeito, a virgindade era necessário para o serviço da encarnação, e o que aconteceu depois é indiferente ao mistério), já que os fiéis não aceitaram ouvir que a Mãe de Deus tenha deixado, em algum momento da vida, de ser virgem, acreditamos que esses testemunhos são suficientes” (Homilia sobre o Natal, 5, Pg 31, 1468 – Dicionário de Mariologia, Verb. “Padres da Igreja”, pg 1016).

Ambrósio de Milão (397 d.C.), catequista de Santo Agostinho, também enfatiza que a Virgem é a “Mãe de Deus”:

“Quem mais nobre do que a mãe de Deus? Quem mais esplendido do que aquela que foi escolhida pelo próprio Esplendor?” (Às virgens, 2,7, PL 16, 208 – Dicionário de Mariologia, Verb. “Padres da Igreja”, pg 1024).

“O que dizem aqueles que costumam rir dos nossos mistérios, quando ouvem dizer que uma virgem gerou e julgam impossível o parto de uma moça solteira, cujo pudor nunca foi profanado pela intimidade com homem? Julga-se impossível na Mãe de Deus aquilo que nos abutres não se nega ser possível? A ave dá à luz sem o macho e ninguém refuta: e porque Maria, ainda noiva, deu à luz, questionam seu pudor”, Santo Ambrósio; Examerão – “Quinta Dia”; pg 210/211).

Conclusão

Maria é Mãe de Deus e embora isso pareça óbvio, a prerrogativa se deve porque Cristo é Deus e suas naturezas (humana e divina) são inseparáveis. A escritura e a patrística confirmam essa grande verdade.

“Se alguém não confessar que o Emanuel é Deus no sentido verdadeiro e que, portanto, a santa Virgem é deípara (pois gerou segundo a carne o Verbo que é de Deus e veio a ser carne), seja anátema” – Anatematismos de Cirilo de Alexandria, citados na carta do Sínodo de Alexandria a Nestório (Novembro/430 d.C.). Capítulo 01.

Escrito por Érick Augusto Gomes

BIBLIOGRAFIA

https://www.bibliacatolica.com.br/ – [uso do texto grego] – Acessado em 09/10/2020.

AMBRÓSIO. Examerão. 1 Ed. São Paulo: Paulus, 2017.

BÍBLIA SAGRADA. Português. Bíblia de Jerusalém. 4ª reimpressão. São Paulo: Paulus, 2017.

DENZINGER. Português. Compêndio dos Símbolos. 3ª Edição. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

DICIONÁRIO de Mariologia. São Paulo: Paulus, 1995

PADRES Apostólicos. 1. Ed. São Paulo: Paulus, 1995.

PAREDES, J.C.R. García. Mariologia: Síntese Bíblica, Histórica e Sistemática. 1. ed. São Paulo: Ave Maria, 2011.

GOMES, Érick Augusto. Manual de Defesa da Fé Católica. 1. Ed. Jundiaí: Clube dos Autores, 2020.

LIÃO, Irineu de. Contra as Heresias. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2009.

ROMA, Justino de. I e II Apologia, Diálogo contra Trifão. 1 ed. São Paulo: Paulus, 1995.



Categorias:Mariologia, Patrística

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