Por: Lucas Falango
Alguns protestantes afirmam que a ideia de um cânon aberto no judaísmo da época de Jesus seria uma “falácia de apologistas católicos” e que na verdade o cânon já estava fechado desde a época de Esdras (!). Mas seria essa a opinião acadêmica? Ou essa é a opinião de quem utiliza de seu título acadêmico (ou o de terceiros) para militar a favor de sua doutrina e opinião pessoal?
Emanuel Tov é reconhecido como um dos maiores especialistas no estudo da bíblia hebraica, ele, juntamente com o acadêmico evangélico Craig A. Evans incluíram na obra “Exploring the Origins of the Bible: Canon Formation in Historical, Literary and Theological Perspective” o artigo “Writtings Ostensibly outside the Canon” de James H. Charlesworth (outro respeitadíssimo erudito bíblico protestante) onde ele afirma sem floreios:
“[…] Não havia um cânone fechado durante o tempo de Hillel, Jesus, Yohanan ben Zakkai, Josefo ou Akiva. De fato, não apenas a coleção de livros permaneceu indefinida, mas a forma de muitos livros, especialmente Jeremias e os livros de Samuel, apareceram em formas muito diferentes antes de 70 d.C. Haviam mais de dez tipos de textos diferentes.” (Exploring the Origins of the Bible: Canon Formation in Historical, Literary and Theological Perspective, edited by Craig A. Evans and Emanuel Tov, p.64)
Não só não havia um cânon, mas não havia nem sequer ainda um texto estabilizado que pudesse ser autoritativo (vide as diferenças entre o texto(s) hebraico de Qumran e o Massoreta, ou entre este e a Septuaginta (que teve um texto hebraico diferente como fonte). Também Timothy H. Lim professor de Bíblia Hebraica e Judaísmo do segundo templo, afirma na obra “The Formation of the Jewish Canon”:
“Pelo final do primeiro século da Era Comum, havia um cânon que uma maior parte dos Judeus aceitavam. Eu enfatizo uma maior parte e não todos porque a busca por um cânon universalmente aceito é ilusória. Discordâncias existiam no passado e continuam no presente. Quando este cânone realmente fechou não está claro, mas uma estimativa aproximada entre 150 e 250 EC não estaria muito longe da realidade.” (Timothy H. Lim, The Formation of the Jewish Canon, p.180)
O protestante Lee Martin McDonald, teólogo e pastor batista, com diversos livros especializados na questão do cânon afirma que:
“É difícil encontrar uma ampla aceitação de um cânon bíblico hebraico fixo de vinte e dois ou vinte e quatro livros entre os adeptos do judaísmo antes do final do segundo século da Era Comum, no mínimo. E mesmo que haja alguma concordancia, não significa necessariamente que um cânon bíblico de vinte e dois ou vinte e quatro livros foi universalmente adotado por todos os judeus na Palestina ou na Dispersão.” (Lee Martin McDonald, The Biblical Canon: Its Origin, Transmission, and Authority)
D. Moody Smith, Jr., acadêmico protestante metodista afirma que:
“[…] O cânon do Antigo Testamento não foi oficialmente fechado no lado judaico na época em que muitos livros do Novo Testamento estavam sendo escritos; portanto, é incorreto sugerir que ele foi completamente fixado na época das origens cristãs.” (D. Moody Smith, Jr., The use of the Old Testament in the New, p.4)
E também o teólogo e erudito bíblico evangélico A. C. Sundberg:
Agora, a história do AT na igreja primitiva nos permite fazer mais uma declaração. A premissa de Jerônimo estava errada. O cânon judaico não era o cânon de Jesus e dos apóstolos; nos dias de Jesus e dos apóstolos, nenhum cânon fechado das escrituras judaicas ainda havia sido formulado, fosse palestino ou alexandrino, fosse da Bíblia hebraica ou da Septuaginta. (Albert C. Sundberg, Jr., “The Old Testament: A Christian Canon” em Catholic Biblical Quarterly 30, 1968, p.154)
Como podemos ver, não havia um cânon definido, no máximo uma vaga noção, algo em comum que os diversos grupos judeus poderiam apelar para suas discussões teológicas independentemente da sua seita de origem (talvez com exceção dos saduceus que afirmavam apenas a Torá). Mas isso está muito longe de ser um cânon propriamente dito. A questão só foi resolvida no II ou III século.
No início da era cristã até mesmo certos protocânonicos continuaram a ter sua inspiração debatida pelos judeus, como Ester, Eclesiastes e Cânticos (cf: Mishna, Yadaim 3,5). O Talmud registra também que os rabinos tiveram dúvidas sobre a inspiração do livro de Provérbios (Shabbat 30b,7) devido a aparentes contradições internas; e em outro caso, foi graças aos esforços de Hezekiah ben Hiyya (c.220-250 d.C.) que o livro de Ezequiel não foi suprimido das Escrituras Hebraicas por considerarem que o livro contradizia a Torá (Shabbat 13b,8). Tudo isso é mais do que suficiente para demonstrarmos com segurança de que no início da era cristã os judeus ainda estavam debatendo o conteúdo de suas escrituras e que eles mesmos não compreendiam que haviam recebido uma escritura com cânone fechado desde a época de Esdras. Não apenas o seu cânon, mas também o seu texto autoritativo foi sendo delineado com o passar do tempo (e algo que não podemos esquecer: conforme se confrontavam com os cristãos).
Outro exemplo da inexistência de um cânon fechado é quando o supramencionado Rabbi Akiva (130 d.C.), apoiador de um falso Messias na Segunda Guerra Judaico-Romana, condena os escritos heréticos (i.e., os cristãos) juntamente com o livro de Ben-Sirach (Eclesiástico) e todas as obras escritas posteriormente a ele (Tosefta Yadayim 2,13). Como nos diz a Enciclopédia Judaica:
“Em primeiro lugar, Akiba foi quem fixou definitivamente o cânon dos livros do Antigo Testamento. Ele protestou fortemente contra a canonicidade de alguns dos Apócrifos […] de modo que o enunciado [condenátorio] de Akiba diz: “Aquele que lê em voz alta na sinagoga livros que não pertencem ao cânon como se fossem canônicos”, etc. […] [o] motivo subjacente ao seu antagonismo aos Apócrifos [era], a saber, o desejo de desarmar os cristãos – especialmente os Cristãos-Judeus – que extraíram suas “provas” dos Apócrifos, [além disso] também deve ser atribuído o seu desejo de emancipar os judeus da Dispersão da dominação da Septuaginta, dos erros e imprecisões que frequentemente distorciam o verdadeiro significado das Escrituras, e eram até usados como argumentos contra os judeus pelos cristãos. (Louis Ginzber, The Jewish Encyclopedia, vol. 1, p.304)”
Akiva, ao fazer essa condenação, nos mostra implicitamente que os cristãos de sua época utilizavam esses escritos como escritura juntamente com sua própria literatura (i.e., o NT); mas não apenas isso, se ele viu necessidade de condenar esses escritos diante da comunidade judaica era porque muitos judeus ainda viam esses livros como sagrados, lendo-os na Sinagoga, e aceitando a autoridade do seu testemunho ao analisar a pregação dos Cristãos que os utilizavam para testemunhar Jesus aos judeus.
Isso fica evidente quando vemos que no fim do século III ainda há rabinos que citam Ben Sirach com a formula autoritativa “está escrito” (Chagigah 13a,2 e Yevamot 63b,13) e até incluindo-o entre os “Escritos” (Bava Kamma 92b,13), – o que por si só refuta a ideia de que a divisão Torah, Neevim, Ketuvim ou a mencionada por Jesus (Lc 24,44) necessariamente exclua algum deuterocânonico -.
Uma outra fonte que confirma os casos supramencionados sobre Sirach é Epifânio de Salamina, um personagem que pode ser tido como uma “ponte” entre o mundo judeu e cristão; nascido na Judéia em 320 d.C., membro de uma etnia judaica falante de grego, conhecida como os Judeus Romaniotas (Ῥωμανιῶτες [Rhomaniótes]), posteriormente se converteu ao cristianismo. Ao expor o cânon judaico ele lista os livros com que os cativos da Babilônia retornaram, ele expõe o cânon rabínico, mas adiciona ao Profeta Jeremias “as Lamentações, e as epístolas de Jeremias e Baruch” e depois diz que
E eles [os judeus] possuem mais dois livros de canonicidade disputada, a Sabedoria de Sirach e a Sabedoria de Salomão, além de alguns outros apócrifos. (Epifânio de Salamina, Panarion VIII, 6 – 385 d.C.)
Epifânio, que cresceu no judaísmo, menciona essas duas obras como ainda tendo sua canonicidade disputada entre os judeus em pleno século IV d.C., além de listar Baruc como cânonico. Tudo isso demonstra que não havia consenso definitivo sobre o cânon no judaísmo, nem autoridade que fosse capaz de impor tal definição. O que seria impensável se eles tivessem recebido um cânon estabelecido desde o período de Esdras.
Isso explica também o fenômeno da existência de uma isolada comunidade judaica (pré-rabínica) como a dos judeus etíopes (Beta-Israel) possuir uma lista canônica bem mais extensa do que a dos judeus rabínicos, incluindo deuterocânonicos e até pseudoepígrafos do período do segundo templo. Como muitos especialistas afirmam, não havia “Judaísmo” na época de Jesus, mas “Judaísmos”, cada seita judaica tinha sua teologia particular e também sua opinião sobre quais eram os textos sagrados, mesmo entre os Fariseus haviam facções que divergiam sobre o cânon e outras doutrinas (cf: Hillel e Shammai). Isso é notado pelo Pe. Jean Carmignac ao analisar a literatura de um desses grupos, os Êssenios de Qumran, especificamente a obra “Guerra dos Filhos da Luz Contra os Filhos das Trevas”, ao estudá-la ele concluiu que não há como diferenciar entre o uso dos livros do cânon hebraico e os escritos extra-canônicos. O mesmo concluiu o erúdito judeu H. L. Ginzberg:
Mas se em seus próprios produtos literários esses sectários [de Qumran], como vimos, não apenas ecoam a terminologia e a ideologia do Livro dos Jubileus, Primeiro Enoque e obras afins, mas os citam como autoridades, eles deveriam ter cópias deles em seus bibliotecas; e entre esses consideráveis restos de uma de suas bibliotecas, certamente partes de algumas dessas cópias deveriam estar presentes. E, de fato, estão (!). (Ginzberg, H. L. “The Dead Sea Manuscript Finds: New Light on Eretz Yisrael in the Greco-Roman Period.” In Israel: Its Role in Civilization, edited by M. Davis. New York: The Seminary Israel Institute of the Jewish Theological Seminary of America. 1956, P.47)
Isso explica a variedade (e a intersecção) dos conteúdos da Septuaginta, da Peshitta Aramaica (conforme encontramos no Códice Ambrosianus e no cânon segundo a obra Marganitha) ou da Bíblia Etíope da Igreja ortodoxa Tewahedo (com 81 livros (!), incluindo 1Enoque e Jubileus). Lee Martin McDonald comenta que não devemos ignorar o conteúdo da LXX acusando-a de ter tido sua forma original alterada pelos cristãos, mas que aqueles textos já estavam presentes na escritura de muitos judeus antes de haver um cânon.
“[…] Uma comparação da LXX usada na igreja primitiva com a Bíblia Hebraica mostra diferenças significativas no texto, na ordem dos livros e até nos livros que a compõem. A LXX contém mais livros do que a Bíblia Hebraica. Uma questão importante aqui é se a LXX continha esses livros antes do nascimento do cristianismo ou se os cristãos foram responsáveis por incluí-los. É provável que as adições a Daniel (Cântico dos Três Jovens, Suzana e Bel e o Dragão), as porções estendidas de Esdras que foram adicionadas a Esdras e a Epístola de Jeremias (às vezes incluída como o último capítulo de Baruc) foram acrescentados pelos judeus no primeiro século antes da Era Comum, ou ainda antes, e faziam parte de uma coleção judaica popular de escritos sagrados antes que a igreja se separasse do judaísmo. Essa coleção maior reflete as Escrituras de muitos judeus antes que houvesse um cânon bíblico fixo, e essa coleção mais aberta de Escrituras é o que está por trás do cânon bíblico maior dos cristãos nos primeiros três séculos. Com exceção de algumas edições cristãs de 4Esdras (também chamadas de 2Esdras), é improvável que os cristãos tenham acrescentado esses escritos a um cânon bíblico judaico anterior mais firmemente fixado. É mais provável que tenham sido considerados santos ou sagrados por alguns judeus bem antes da época de Jesus e, por circularem amplamente entre os judeus em Israel, foram adotados pelos cristãos.” (Lee Martin McDonald, The Biblical Canon: Its Origin, Transmission, and Authority)
A conclusão de Martin é de que:
“[…] Em suma, a igreja primitiva recebeu de sua herança judaica a noção de Sagradas Escrituras (embora não um cânon fechado) que acreditava revelar a revelação de Deus e predisse o evento de Cristo.” (Lee Martin McDonald, The Biblical Canon: Its Origin, Transmission, and Authority)
O mesmo concluiu o teólogo Luterano Alfred Jansen…
“A comunidade primitiva (cristã) ainda não conhecia o texto e o cânon massorético – ou pelo menos não se considerava vinculada meramente a eles, como indicam o uso do texto da LXX e algumas leituras de textos extra-massoréticos – o que é então hoje o Antigo Testamento para as igrejas da Reforma. Um apego unilateral ao cânon e ao texto da Sinagoga parece impossível em vista da situação descrita no Novo Testamento.” (A.Jepsen, “Kanon und Text des Alten Testaments”, Theologische Literaturseitung 74 (1949), 65-74, esp. 73).
…O erúdito protestante A. C. Sundberg:
“Parece agora que as bases sobre as quais Lutero e os protestantes subsequentes separaram os livros Apócrifos do AT cristão são historicamente imprecisas e enganosas. Não só o assim chamado cânon palestino do hebraico não foi fechado nos dias de Jesus, mas também não existia um cânone hebraico de fato paralelo ao cânon de Jamnia posterior. Nos dias de Jesus e dos apóstolos, o status do cânon judaico (e isso prevaleceu em todo o judaísmo) era o de uma coleção fechada da Lei, uma coleção fechada dos profetas e um grande número indiferenciado de escritos religiosos judaicos consistindo de uma coleção que foi posteriormente chamada de “Escritos”, livros posteriormente chamados de Apócrifos [ou seja, os deuterocânonicos] e pseudoepígrafos, e outros livros conhecidos por nós apenas pelo nome, e talvez outros livros desconhecidos e perdidos. E foi essa situação canônica que passou do judaísmo para o cristianismo como as Escrituras da igreja primitiva.” (Albert C. Sundberg, Jr., “The Protestant Old Testament Canon: Should It Be Reexamined?” em “A Symposium of the Canon of Scripture”, Catholic Biblical Quarterly 28, 1966, p.199)
“Eu já exortei os Protestantes que […] eles deveriam aceitar o cânon do AT da igreja ocidental ou deveriam desenvolver uma nova apologética para continuarem apoiando o cânon judaico. Agora está claro que o AT da igreja primitiva era distintamente um cânon cristão. E não resta mais nenhuma razão para diferenciar entre os livros desse cânone por causa das dúvidas de Jerônimo.” (Albert C. Sundberg, Jr., “The Old Testament: A Christian Canon” em Catholic Biblical Quarterly 30, 1968, p.155)
…O teólogo batista Marvin Tate:
“Parece claro que a posição protestante deve ser julgada como um fracasso em bases históricas, na medida em que buscou retornar ao cânon de Jesus e dos apóstolos. Os Apócrifos [ou seja, os deuterocânonicos] pertencem ao patrimônio histórico da Igreja.” (Marvin Tate, “The Old Testament Apocrypha and the Old Testament Canon” em “Review and Expositor, 65” (1968), p.353).
Para Concluir:
Não recebemos um cânon fechado do Judaísmo. Além disso, não faz sentido invocarmos “os judeus” como testemunhas para definir o cânon, pois não havia tal grupo homogêneo na época de Jesus, e mesmo que existissem, não possuíam ainda cânon definido, com cada grupo utilizando diferentes livros como escritura sagrada, havendo disputa até mesmo sobre os protocânonicos durante a Era Cristã. Apelar “aos judeus” é simplesmente um anacronismo, é basicamente elegermos um dos grupos, o judaísmo rabínico (herdeiros do farisaísmo), ignorando todos os outros grupos que existiam, como sendo os representantes legítimos do que seja o judaísmo; esquecendo que o reino foi tirado destes e dado àqueles que sãos os verdadeiros judeus e à verdadeira Israel ((Mt 21,43; 1Pd 2,9-10; Rm 2,28-29; Gl 6,16), a Igreja do Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade, a quem competiu definir o cânon do Novo e do Antigo Testamento.
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Parabéns pelo estudo sobre os Deuterocanônicos é isso aí tem que refutar os protestantistas mesmo.
Que bom que entre os protestantes hajam homens e mulheres honestos, pois assim usamos os pareceres deles mesmo para defender a fé de sempre.
É muito importante os católicos romanos terem excelentes argumentos contra as objeções dos protestantistas em relação aos Deuterocanônicos como por exemplo a passagem de Tobias 5:6 sobre a distância entre Ecbatana e Rages ser percorrida em dois dias quando na verdade pela distância são mais de dois dias.
Não esqueçamos também de onde vem a própria Bíblia. Em 382 d.C., o Papa Dâmaso I definiu oficialmente o conteúdo da Bíblia com listas de livros sobre “o que a Igreja Católica universal aceita e o que deve evitar”. Ele rejeitou todos os livros agora comumente conhecidos como Apócrifos do Novo Testamento, e então no Concílio de Ferrara-Florença (1438-1439 d.C.), as Igrejas Católica e Ortodoxa concordaram com a mesma lista, e o Concílio de Trento no século XVI repetiu isto. Hoje todos os livros decididos através dessas Tradições são aceitos pelas denominações Protestantes, porém o Antigo Testamento é uma história diferente com os Protestantes rejeitando os livros de Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico, e os dois livros dos Macabeus.
Protestantistas argumentam que a Bíblia é a autoridade e isso é errado. Acima da Bíblia esta a ação de Deus na Igreja e acima da ação de Deus está o próprio Deus logo a Bíblia não pode ser a autoridade. A ação de Deus age na Escritura e ( formação do Cânon e interpretação) na Tradição e no Magistério.